“O século XIX assistiu ao nascimento da linguagem das flores e, com ela, um gênero literário que atribuiu a cada espécie um significado amoroso. De acordo com esse dicionário simbólico, um amor-perfeito, por exemplo, significava ‘existo só para ti’, e um jasmim miúdo, ‘paixão’. Assim, ao enviar e receber flores, homens e mulheres, pertencentes aos grupos da burguesia urbana carioca, imersos no cotidiano do cortejo e do namoro, poderiam trocar mensagens secretas de afeto ou de angústia, bem como marcar encontros clandestinos, de maneira discreta e silenciosa, driblando os olhares dos familiares no interior da ordem patriarcal brasileira, que já evidenciava suas fissuras.
Essa linguagem das flores, tão esquecida nos dias de hoje, é recuperada neste livro como uma privilegiada via de acesso ao universo social, cultural e sentimental daquele período.”
Editora: Unesp
Autora: Alessandra El Far
Ano da 1ª publicação: 2022
Ano desta edição: 2022
Gênero: Acadêmico
Páginas 246
O livro em questão, diferente do que pensei quando o vi se destacando nas redes sociais graças à série da Netflix “Anne with an ‘e’” (ou “Anne com ‘e’”), trata sobre o início e a evolução do gênero literário “linguagem das flores” e a sua contribuição para as mudanças sociais e, principalmente, interpessoais durante os séculos SVIII, XIX e XX.
Inicialmente, somos levados até o Oriente com suas odaliscas e haréns para conhecer o sélam (“a arte de compor buquês para expressar um pensamento, emoção ou confidência por meio da analogia entre uma flor e seu significado.”). A autora explica como esse método de comunicação silenciosa já era um recurso utilizado por essas mulheres há muito tempo. Presas nos haréns dos sultões, elas se comunicavam com os antigos pretendentes, que ficavam do lado de fora das edificações, ao jogar certos objetos e flores simbólicos.
Ao conhecer esse curioso código - que fazia uso não só de flores, mas também de raízes, frutas e certos objetos -, os europeus que por ali viajavam decidiram levar consigo esse método e introduzi-lo na Europa.
Foi no século XIX, mais especificamente na França, que livros contendo o significado de cada tipo botânico começaram a ser comercializados - Alessandra El Far traz uma atenção especial à edição de Madame Charlotte de La Tour. Da França, o gênero popularizou-se - trazendo uma nova importância e função para as flores - e espalhou-se pela Europa, conquistando fielmente Portugal.
Com a vinda da Corte Portuguesa para o Brasil, ainda no século XIX, a “linguagem das flores” finalmente chega em nosso país e encontra solo fértil na sociedade carioca. Aqui, esse gênero literário deixou de ser apenas uma leitura leve e recreativa para ocupar o tempo livre das donzelas sem macular seu caráter ou atrapalhar seus afazeres e tornou-se uma prática utilizada para driblar a família da jovem em público quando fossem contra o namoro.
Mesmo de longe, o jovem casal conseguiria trocar mensagens silenciosas ao enviar e receber flores, raízes, frutas e, inclusive, trocar certos gestos específicos.
A partir daí, a autora nos leva à uma visita a sociedade do século XIX no Rio de Janeiro, onde conhecemos figuras que contribuíram para a evolução da cidade no período da Corte Real e como essas mudanças influenciaram no desenvolvimento dos relacionamentos.
Também conhecemos o Rio de Janeiro “janeleiro”, quando as treliças de madeira foram finalmente retiradas, devido às mudanças urbanas que estavam acontecendo na época, e as jovens passaram a ficar com maior frequência em suas janelas para verem seus pretendentes (ou conquistarem um…) e saber o que estava acontecendo do lado de fora, nas ruas, já que não podiam sair de casa desacompanhadas das famílias, nem mesmo para um passeio!
Ainda somo apresentados a um método curioso do namoro… as cartas anônimas! Quando os namorados, cansados dos obstáculos que atrapalhavam na comunicação direta entre si, publicavam suas mensagens no “Jornal do Comércio” - edições que todos tinham em mãos e, por isso, não haviam riscos de serem descobertos. O nomes dos remetentes e destinatários eram sempre censurados e as mensagens possuíam conteúdos que apenas os envolvidos entenderiam. Mesmo assim, confusões e desentendimentos quanto a quem era endereçada a carta publicada, por vezes, aconteciam.
O namoro, então, evoluiu de algo em que ambas as partes buscavam realizar deforma silenciosa - por conta do medo de impedimentos por parte de suas famílias, sendo terminado quando houvessem riscos ou suspeitas de serem descobertos - e passou a ser algo que as moças procuravam com afinco (para garantir seu pretendente e um casamento vantajoso), sempre com o cuidado de não “manchar a sua imagem” com o título de “namoradeira”, e o qual os rapazes viam como um jogo de conquista e diversão (nasce, assim, o “flirt” carioca!).
Por fim, vemos como as flores e a natureza no geral influenciaram a sociedade ainda na virada do século XIX para o século XX com o incentivo à criação de jardins públicos e privados, aprofundamentos das pesquisas botânicas, abertura de diversas floriculturas e hortos, além de locais de venda de plantas exóticas, no vestuário e, principalmente, na literatura marcando presença nas obras de escritores Românticos, Naturalistas e Realistas.
Particularmente, estre livro surpreendeu-me de forma positiva! Quando o escolhi para leitura, claramente influenciada por “Anne with an ‘e’”, pensei que seria um prova, um texto narrativo. Ao invés disso, encontrei uma pesquisa acadêmica intensa e muito interessante sobre a sociedade carioca e a evolução de seus relacionamentos durante os séculos XIX e XX.
É curioso pensar que esse gênero literário começou na França como dicionários para o estabelecimento da comunicação entre casais que, por algum motivo, não podiam estar juntos de forma amorosa abertamente, e evoluiu no Brasil para algo que ensinava como “conquistar” a pessoa amada, manter o interesse, marcar encontros (com dias e horários específicos, diga-se de passagem!) ou ainda terminar todo o acordo. Não só isso, mas as editoras da época ainda disponibilizavam modelos de cartas prontas para que um lado do relacionamento enviasse ao outro (considerando todos os tipos de pessoas e situações possíveis - e impossíveis!) - havia até modelos de cartas para enviar ao futuro sogro com o pedido de casamento da jovem, imaginem só!
Ainda, as cartas e declarações anônimas publicadas no Jornal do Comércio eram tão melosas e clichês, repletas de sentimentalismo, que até as pessoas da época ficaram de “saco cheio” e publicavam artigos reclamando dos “casaizinhos” - além das empresas que faziam graça dos jovens enamorados e aproveitavam para propagandear seus produtos e serviços ao copiar a forma de escrita dos casais e publicar no mesmo jornal.
Enfim, foi uma leitura prazerosa e intrigante por mostrar, de forma bem clara, como funcionavam os relacionamentos da época, como a sociedade evoluiu e como a “linguagem das flores” influenciou - até demais - tudo isso.
E você? Sabia que as flores falavam?
Henda da Rocha Freire
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